09/08/2015

O pai que nunca existiu


Acomodado desajeitadamente no braço do sofá e ignorando tudo ao seu redor, cabisbaixo, quase "enterrava" o rosto no smartphone enquanto digitava. A franja caindo no olho não podia ocultar o rosto inexpressivo.
- Parece muito ocupado. - observou Cláudio sentando-se no sofá ao lado, procurando, mesmo que achando em vão, uma proximidade.
A resposta que obteve foi uma leve e ligeira erguida de sobrancelhas.
O conflito de gerações era inegável e mesmo respeitando e sentindo que pudesse estar sendo inconveniente, não queria se dar por vencido.
- Achei que fosse almoçar na casa de seus pais hoje.
- Por quê? - foi a pergunta lacônica.
Encorajado a emendar a conversa, afinal, não era sempre que tinha essa abertura contra seu pior rival, o aparelho, ajeitou o corpo para a frente, para ficar ainda mais próximo e afirmou:
- Hoje é Dia dos Pais.
- E? - indagou com indiferença sem mover um músculo além dos dedos inquietos.
Claudio respirou fundo antes de prosseguir naquilo que considerava quase uma missão.
- E... - disse meio desconcertado. - E achei que fosse almoçar com seu pai hoje.
- Achou errado.
O silêncio de indiferença, agora tenso, tomara conta da sala.
- Vini...
Foi interrompido por um "shhh".
Percebendo que sua presença e principalmente sua conversa eram dispensáveis, Claudio levantou suspirando de cansaço e deu as costas, afastando-se e desistindo de tentar um diálogo. Foi quando teve os passos interrompidos pela voz atrás de si:
- Ele me ligou, me enviou mensagens pelo whats. Mas... Você sabe, aquele pai nunca existiu.
Comovido, virou-se e se deparou com a pessoa com a mesma atitude, sem ter mudado sequer o mínimo de sua posição no sofá. Os olhos vidrados na tela, a voz tão desprovida de expressão quanto o rosto.
- Um pai que não existiu, um filho que nunca existiu, um amor que nunca existiu. Tudo inexistente.
Pausa.
- Não há razões para dar razões à inexistência.
Com o semblante entristecido, Claudio avançou uns passos adiante e parou em frente ao garoto, pouco se importando se a atenção exclusiva não estivesse direcionada a ele.
- Eu só quero que saiba que... - dizia com a voz embargada de pesar. - Eu só quero que saiba que de forma alguma acho justo tudo o que fizeram com você, Vini.
O rapaz parou de digitar por um momento, mas não o encarou. Os olhos baixos caminhavam pelo chão, pelo carpete verde, parte dos móveis e tudo à sua volta que estivesse em um alcance máximo para que não precisasse erguê-los.
- Eu sei.
Poucos segundos, retornou à sua frenética digitação.
- Que bom que sabe. Só achei que pudesse passar um domingo do Dia dos Pais com seu pai, mas... Como bem falou, achei errado, para você ele não existe.
- Também não existo para ele. Nunca existi. Quem não aceita o verdadeiro de mim ou o ignora, presenteia com sua inexistência.
Claudio passou a mão no rosto, tenso. Nem sabia o que dizer.
Após um silêncio, desta vez um pouco mais sutil, enquanto digitava, ele comentou quase ensaiando um sorriso:
- Lembra quando eu acreditei que aquela dose de Rivotril me mataria?
- Por favor, nem me lembre disso! - foi mais uma súplica de pânico do que uma repreensão.
O sorriso quase ensaiado emergiu pela metade e ele continuou:
- Fui um idiota. - liberou um riso nervoso. - Idiota por ter acreditado tanto naquela dose quanto nas pessoas que acreditei que me amassem de verdade.
- Não foi idiota. Apenas uma pessoa sensível e incompreendida, que confiou cegamente na aceitação de pessoas que diziam e deveriam amá-lo exatamente como é. Você é especial Vini e merecia passar um Dia dos Pais digno, conversando com seu pai.
Liberando outro riso nervoso, ele jogou a franja para cima que quase no mesmo instante cobriu novamente seus olhos.
- Mas estou fazendo isso.
- Sério? - indagou surpreso. - É com ele que conversa tanto aí? - apontou o smartphone num movimento de cabeça. - Não sei o que dizer, se fico feliz por estar conseguindo
- Não consigo. Aí é que está! - levantou e encarou-o de frente. - Mas estou conversando com meu pai. Como diria minha querida amiga Larissa, ele só "encarnou" um pouco adiantado de mim. Feliz Dia dos Pais!
E com um beijo na testa, Vinícius surpreendeu o avô.


Trecho do livro Rivotril com Coca-Cola, autoria de Mi F. Colmán.


Você me telefonou hoje.
Lutando para achar as palavras certas.
O tempo pode mudar uma coisa ou outra.
O tempo mudou nossas vidas.
Mas sabe...poderia ter sido diferente, pai.

As palavras trazem uma doce memória.
Sentado numa árvore caída num barranco.
Ao meu lado, um homem distinto me encorajando
Dizendo que sou capaz.
Mas você sabe... Você não estava lá.

Você diz "Filho, vamos esquecer o passado.
Eu quero outra chance. Farei tudo certo"
Você implora por um recomeço.
Tentando construir uma ponte destruída.
Mas você sabe...
Você nunca a construi, pai.

Então eu me sento aqui à noite.
E escrevo até dormir.
E o tempo continua passando...

O tempo fez com que você finalmente percebesse,
Sua solidão e a sua culpa interior.
Você está buscando por algo que nunca teve.
Voltando agora e olhando para trás
E você sabe...
Eu não estou lá.

Você diz "Filho, vamos esquecer o passado.
Eu quero outra chance. Farei tudo certo"
Você implora por um recomeço.
Tentando construir uma ponte destruída.
Mas você sabe...
Você nunca a construiu, pai.

Você nunca a construiu, pai.
Você nunca a construiu, pai.
Você nunca a construiu, pai.
Você nunca a construiu, pai.



18 comentários:

  1. Nossa! Que profundo e triste...
    Eu nao sei falar bem como sao os pais de hoje, Mi.
    Nao vou generalizar, mas vejo muitos pais que nao participam da vida de seus filhos... e nao sao presentes. Mas, em contrapartida vejo filhos tao presentes na vida de seus pais. Posso te dizer, que vejo isso em minha familia. Para um filho se sentir inexistente para os seus pais eh tao .. tao... nem tenho palavras. Como pode isso? Creio que esta possa ser uma das dores mais difíceis de superar;ser inexistente e rejeitado por parte daquele que mais esperamos apoio.
    Excelente o seu texto e serve para uma profunda reflexao!
    Bjs e um feliz domingo!

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    1. Lu, eu gosto de trabalhar com sentimentos bem profundos na Literatura, já vai se acostumando, rsrsrs.
      Acredito que todas as gerações passaram pela indiferença dos pais. Algumas até sofriam exploração de trabalho infantil. Mas que atualmente existe sim uma carência muito grande de mãe e pai é fato. Conheço professoras, pedagogas, que confirmam isto.
      É de ficar sem palavras sim, não há como descrever tanta rejeição, li desabafos terríveis no Facebook no Dia dos Pais.
      Parece que esta data faz mais mal do que bem.
      Beijos minha amiga e muito obrigada! :))))

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  2. Muito triste isso! Mas lindamente escrito! bjs, ótimo domingo! chica

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    1. Ah Chica, muito obrigada!
      Fico feliz que tenha gostado! :))))
      Beijos e uma ótima quarta-feira para ti.

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  3. Ual! Que lindo. Muito profundo. Achei muito legal ele ter uma amiga com meu nome hehe.
    Hoje tenho uma boa relação com meu pai, mas nem sempre foi assim. Não que ele fosse um pai ruim, mas eu é que não era das melhores filhas. Vi que o texto é um trecho de seu livro. Espero ter a chance de lê-lo um dia.
    Beijos

    Vidas em Preto e Branco 

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    1. Uau! Que lindo ler um "que lindo!" a respeito de um texto meu! Muito obrigada Lary! :))))
      Sim, Larissa é uma das protagonistas do Rivotril com Coca-Cola e que tem um papel super importante na vida de Vinícius.
      Espero muuuito que tenha a chance de que todas as pessoas que gostam do que escrevo possam lê-lo um dia.
      Muito obrigada e muito feliz pelo comentário.
      Beijos.

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  4. Boa noite Mi.
    Muito bem escrito seu texto, acho que na realidade da vida que temos , onde o amor em muitos corações não mora, existe situações assim infelismente. Uma feliz semana. Beijos.

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    1. Mirtes, bom dia!
      Amiga, eu não tenho recebido nenhuma atualização do teu blog, será um bug ou não está atualizando mesmo? Preciso conferir isto. Porque mesmo sem comentar eu dou uma passada nos blogs amigos que estão atualizando.
      Infelizmente o amor não mora no coração de muitas pessoas que nem deveriam ser chamadas de pai.
      Beijos e uma feliz quarta-feira para ti! :)))))

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  5. A construção foi maravilhosa Mi, esta é arte da escrita, sem rebuscar um tradução perfeita da relação deteriorada e a interferência/influencia da tecnologia nas comunicações.
    Um belo trabalho amiga com ilustração perfeita e capacidade de fazer com que o leitor entre em cena e as recrie.
    Um lindo fim de domingo para uma nova e boa semana.
    Meu abraço com carinho.
    Bjs.

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    1. Oi Toninho!
      Pois é amigo, sei que o esperado nessa data comemorativa é homenagear os pais, no entanto, o que vi de depoimentos deprimentes, não achei sentido em fazer isso aqui na blogosfera. Quantas pessoas não estão sofrendo tanto pela falta de um pai, dentro ou fora de casa?
      Então lembrei desta cena do meu livro e achei que ela se encaixaria perfeitamente ao dia.
      Fico muito, muito feliz em saber que consigo fazer meus leitores entrar em cena com meus personagens e recriar ao seu jeito. Isso é o que eu valorizo na leitura, deixo o leitor à vontade, sem exagerar nas descrições para que a imaginação flua.
      A ilustração ficou perfeita, é a cara do Vinícius. rs
      Beijos e um bom restinho de semana para ti, meu querido.

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  6. Ixi....
    Um belo texto, menina. Pais incompreendidos e filhos revoltados e fora do contexto. É a vida, tão comum...
    Uma linda semana pra vc, beijos!

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    1. Oi Clara, muito obrigada! :)))
      Eu vivo meio na vibe do Renato Russo: "Você culpa seus pais por tudo e isso é absurdo..."
      Porém, incompreendidos ou não, filhos revoltados ou não, o que presenciei no último domingo foi muita tristeza, muitas coisas não resolvidas e não consegui "romantizar" a data por aqui. Não estaria sendo eu se fizesse isso.
      Beijos e um bom restinho de semana para ti!

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  7. Poxa vida, verdadeiro, e triste... Mas necessário para alguns espíritos!
    Beijos, ótima semana.

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    1. Oi Juni!
      Infelizmente se encaixou bem com a realidade que presenciei no último domingo.
      Muito obrigada pela visita e um ótimo restinho de semana para ti. :))))

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  8. Triste mas belo, mas não é surpresa né :)

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    1. Não né? Pelo visto tu já captou meu estilo literário. ;) :))))

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  9. Não achei triste, achei agridoce! O rapaz pode até não ter uma relação com o pai, mas leva essa não relação com tranquilidade inquietante, mas lúcida como aplaudir uma constatação do obvio dessa magnitude: "Quem não aceita o verdadeiro de mim ou o ignora, presenteia com sua inexistência."

    E sim o rapaz tem pai, o avô dele é o pai que ele precisa e ele sabe disso.

    Amei o texto, amei esse rapaz resiliente!

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  10. Final surpreendente. A descriçao tão fiel que nos faz ver nitidamente a cena, os rostos.., nos faz tocar as sensações do texto.

    Hoje em dia existe mais divórcios, é o que me parece.A família núcleo - pai, mae,irmãos- está sendo despadronizada, digamos. E isso nao é ruim nao. As mulheres dependiam mais financeiramente dos maridos e continuavam no casamento infeliz por medo de começar de novo, de voltar pra casa dos pais... E hoje voce tem padastro, madastra, meio- irmaos, que sao flhos so do seu pai ou só da sua mae.Sempre existiu isso,claro.Mas isso de se manter num relacionamento por comodismo e medo, tem acabado. Em contrapartida, vemos filhos que crescem longe do pai. Pais que esquecem os filhos do primeiro casamento e se dedicam só aos filhos da esposa atual. E se torna o pai ausente, aquele que só dá a pensão porque é obrigado. Pai e mãe é uma funçao? Eu, por exemplo, tenho papel de mãe para meus irmaos, apesar de termos mae sim, graças a Deus ela está viva. Meu pai era um pai presente, era um pai doce, que nunca nos bateu, mas que era ao mesmo tempo duro. Ele nao deixava a gente dançar quadrilha na época de festa junina. Eu so cortei o cabelo aos 13 anos porque ele nao deixava a gente cortar. E cortei porque minha mae deu uma força e amansou ele. Lembro muito bem que quando ele chegou do trabalho, eu corri e me deitei na minha cama pra ele nao ver meu cabelo. E quando enfim ele viu, ele só balançou a cabeça esticando o lábio pro canto da boca em desalento. E eu virei e deu um sorriso de contentamento. Ufa! Ele aceitou. E eu estava feliz de ter me livrado daquele cabelo que chegava à altura da minha bunda. Nem por isso meu pai foi ruim. Nem por isso eu o amei menos. Eu amo meu pai e minha mae intensamente. Pra mim falar mae é automaticamente falar de pai e vice-versa, porque os dois sempre estavam ali na e pra minha vida. Eu me perguntava que papel os gêneros podem ter na educaçao de uma criança? Os casais homossexuais que adotam uma criança irão deixar algum tipo de lacuna na criança? Vai ficar faltando algo? Nao. Pois as pessoas sao pessoas independente de sexo. Minha mae poderia ser a durona que nao deixava nem eu cortar o cabelo. Da minha mae apanhei, mas do meu pai, nao. Os dois tinham um jeito de ser. E as brigas entre meus pais foram tantas que minha mae nao foi embora porque estava nas estatísticas de mulheres que dependem do marido, que nao querem "recomeçar", que tem medo de repartir a família. E no fim, ficaram juntos até que a morte os separou. Meu pai e minha mãe eram super apaixonados ainda um pelo outro. Bebiam juntos, aprontavam juntos, brigavam juntos. E meu pai morreu dizendo que nao aguentaria viver sem minha mae., que ele tinha que ir primeiro. Acho que Deus sabia disso e o levou antes mesmo. Ainda bem que nao se separaram a cada briga, a cada crise. Se amavam do jeito deles. Quantas vezes ao longo da minha vida, vi eles dois deitados na mesma rede, conversando. Pai e mae pra mim sao dissociavéis. Minha mae está despedaçada, mas inteira, com saúde. Mas na palavra e na figura mae, pra mim, falta a presença, falta a palavra pai.

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"Não compartilho meus pensamentos achando que vou mudar a cabeça de pessoas que pensam diferente. Compartilho meus pensamentos para mostrar às pessoas que já pensam como eu que elas não estão sozinhas". Autor desconhecido

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